terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Um dia ( II parte)



Desperto do passado e abro os olhos para o presente.
Continuo a olhar pela janela e reparo que, embora a paisagem seja a mesma de há doze anos, hoje consigo ver coisas que nunca tinha visto antes. Vejo um cenário feliz, com figurantes felizes e protagonistas tristes. Vejo um velho deitado num banco de jardim, vejo um arrumador de carros ao fundo da rua e vejo uma criança suja a tentar vender pensos rápidos a quem passa. Durante o ano são meros figurantes que vivem à margem de uma sociedade egoísta. Porém, em Dezembro, toda a gente fica solidária e os quer ajudar, apesar de o velho continuar a dormir ao relento num desconfortável, mísero e desumano banco de jardim, do arrumador de carros continuar a tentar arranjar uns trocos para mais uma dose de heroína e da criança suja continuar a vender penso rápidos para não apanhar uma tareia de uns pais alcoólicos, quando chegar a "casa".
Deixei de acreditar no Natal, porque não passa de uma ilusão. A festa do nascimento de Cristo foi substituída pela festa da troca de presentes. Será que os pais ainda contam aos filhos a história de José, Maria e do Anjo que anunciou que esta daria à luz o filho de Deus? Será que sabem que o Menino nasceu numa cidade chamada Belém e que uma linda estrela guiou três reis até Ele? Provavelmente sabem, mas será que isso tem algum significado para eles? É então que neste conflito interior, decido fazer algo para dar algum significado ao meu Natal. Saio de casa apressadamente, sem um plano definido. Na rua há uma harmoniosa mistura de sons, cores, cheiros, tão característicos desta época.
Vou caminhando... caminhando... caminhando... até que encontro o velho do banco do jardim. Aproximo-me e digo-lhe "Bom dia!". Não me responde. Talvez por estar habituado a ser ignorado não sente a minha presença. Pergunto-lhe porque dorme naquele banco de jardim. Encolhe os ombros e não me responde. Olho-o nos olhos. Como são lindos! Olhos cor de mar... uma cor indefinida, assim como a sua idade. Quantas histórias, aventuras e desventuras deverão esconder as suas rugas? Pede-me para fechar os olhos e que imagine uma pequena aldeia escura, do interior, com casas de granito e ruas estreitas de terra batida. Lá tinha nascido um menino, numa família de origem humilde. Viviam, como quase todas as famílias daquela época, com grandes dificuldades e cedo o menino teve que abandonar a escola para ajudar os pais e os seus irmãos. No entanto, apesar das grandes dificuldades, afirma ter saudades desses tempos, principalmente da maneira como viviam o Natal, recordações que o tempo não conseguiu apagar-lhe da memória.
Apesar de ser oriundo de uma família modesta, neste dia nunca faltava um bom bacalhau que o merceeiro ia buscar com um mês de antecedência à cidade, uma variedade de hortaliças, que cultivavam no pequenos quintal e as rabanadas com bastante açúcar e canela. Ainda não havia o hábito de se fazer a árvore de Natal. Em vez dela, existia um pequeno presépio de figuras de barro já gastas pelo tempo. Quando soavam as doze badaladas no sino da igreja, todos os aldeões saíam de suas casas e iam à missa do galo, reunindo-se no fim no largo da igreja a cantar, a beber vinho fino e a comer doces. Ao raiar do dia, quando o menino e os seus irmão acordavam, encontravam dentro dos seus socos dois tostões e um chocolatinho pequenino embrulhado num reluzente papel de prata. "Pode parecer pouco", diz o velho, " Mas para o mim era o melhor do mundo!" Ficava todo o ano à espera do Natal... Certo dia, o menino cresceu, abandonou a pequena aldeia escura e foi para o litoral trabalhar numas minas de carvão. A partir daí nunca mais sentiu o Natal.
Fiquei comovida com a história do velho do banco do jardim. Olhei-o com admiração. A escola da vida fez dele um sábio e as suas rugas não são as marcas do tempo, mas sim do conhecimento. Pergunto-lhe pela família, diz-me que depois da morte da esposa, sentiu-se desamparado e solitário e saiu de casa sem avisar o filho. Nunca mais regressara. Vagueava, perdido pelas ruas, esperando que o frio abraço da morte o levasse para junto da mulher que amava.
Uma lágrima solitária percorre-lhe o rosto. Digo-lhe que se ainda não sentiu o abraço da morte é porque ainda tem alguém que precisa muito dele. Depois de muito insistir, consigo convencê-lo, finalmente, a procurar o filho.
Caminhamos com calma, pelas ruas agitadas, em direcção à casa do filho do velho do banco de jardim. Chegamos ao nosso destino. Toco à campainha e atende-me um homem alto, magro, moreno, com olhos cor de mar. Concluí que fosse o filho do velho que, ao ver o pai, ficou completamente paralisado e, num daqueles momentos inexplicáveis, dão um forte abraço. Não dizem nada. Palavras para quê se os gestos falam por si. Choram e riem como duas crianças. Minutos depois, chegam os netos e a nora, juntando-se ao abraço. Vou-me embora, retendo na memória uma das cenas mais lindas que jamais presenciei. Depois do vi, começo a acreditar na magia do Natal.
Faço o caminho de volta para casa com o espírito leve. Lembro-me então do arrumador de carros e das criança suja. Procuro por eles, mas não os encontro em lugar algum. No entanto, não fico triste, porque sinto que alguém os ajudou.
Volto para casa. Infelizmente, já não posso ir ajudar a minha avó a preparar os doces, mas vou prepará-los com a mesma emoção e alegria de quando era criança, pois voltei a acreditar no Natal e ele faz-me acreditar que todos os sonhos são possíveis. Basta acreditar neles.
Anoiteceu. A alegria espalha-se por toda a casa. Vou à janela, o céu está repleto de estrelas e, subitamente, uma destaca-se das outras, a sua beleza e o seu brilho são tão grandes que ofusca todas as outras. Olho para a estrela e vejo um mundo sem guerra, sem fome, sem injustiças e repleto de harmonia e felicidade... sinto aquela estrela a invadir-me a alma de paz e vejo que faz o mesmo com o mundo.

Girassol, (TSMS), 2001

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